Textos Reflexivos

Próxima Parada: Transplante Renal!

Autor: Ênio Ricardo Macedo Vilhena

Fonte: https://img.r7.com/images/2017/08/01/39o5ah8mgw_1sjvwinws6_file?dime

Mande notícias
Do mundo de lá
Diz quem fica
Me dê um abraço
Venha me apertar
Tô chegando…
 
Coisa que gosto é poder partir
Sem ter planos
Melhor ainda é poder voltar
Quando quero…
 
Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega prá ficar
Tem gente que vai
Prá nunca mais…
 
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai, quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim chegar e partir…
 
São só dois lados
Da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem
Da partida…
 
A hora do encontro
É também, despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar
É a vida…

(Encontros e despedidas – Milton Nascimento)

No retorno do trabalho para casa, colocando o fone de ouvido e selecionando uma playlist aleatória de canções brasileiras, me deparei com a música de Milton Nascimento: “Encontros e Despedidas”.  Essa canção abre espaço para várias reflexões, tanto no sentido real da letra que fala de momentos de encontros e despedidas vivenciadas em uma pequena estação de trem da cidade de Três Rios-MG onde o compositor vivera, quanto no sentido simbólico que nos remete a decisões da vida, do desejo de crescimento pessoal e das necessidades de mudanças que giram em torno do contexto individual e coletivo. Considerando a minha rotina na Nefrologia, pensei também sobre uma realidade importante, vivenciada por uma parcela de pacientes renais crônicos.

Antes de integrar a equipe de psicólogas da Fundação Pró-Renal, tive uma experiência de dois anos como Psicólogo Residente em Nefrologia pela Universidade do Estado do Pará, este período oportunizou-me a desenvolver a prática da Psicologia em diversos cenários, entre eles, a nefropediatria da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará e o centro transplantador do Hospital Ofhir Loyola. Estes campos de prática me proporcionaram a visualização clara da vivência de pacientes renais crônicos e seu desejo pela realização do transplante renal (TX) e em alguns casos o desejo abria espaço para a única chance daqueles pacientes que já estão em falência de acesso vascular (AV).

A relação entre essa reflexão e a canção supracitada? Acontece querido leitor, que no Pará – e acredito que em alguns estados brasileiros, a realidade sobre o TX é limitada e por vários fatores, os pacientes sentem a necessidade de mudar de Estado para poder realizá-lo. Por exemplo, em 2017, período em que estava atuando na nefropediatria, o Pará não contava com centro transplantador para crianças com peso abaixo de 17 quilos ou em falência de AV. Portanto, pacientes com essas características eram encaminhados para o Hospital Samaritano em São Paulo.

Sendo assim, observamos o movimento de inúmeras mães e familiares que eram também as doadoras do órgão concedido aos pacientes. Essas mulheres que renunciavam de suas casas, outros filhos, cônjuges, trabalho, família, identidade cultural, etc., para realizar o sonho de ver o filhos crescendo sem o auxílio da hemodiálise. Enquanto os filhos vivenciavam um misto de sentimentos, entre eles, o medo e a esperança.

Recordo-me de uma situação na qual a mãe que a todo instante apresentara um discurso de coragem e enfrentamento, um dia antes da viagem a São Paulo se emocionou profundamente. As lágrimas eram acompanhadas por relatos de saudade, medo, angústia e desamparo. Nesse mesmo dia, seu filho (paciente renal crônico), chegou para o último dia de Hemodiálise com uma espada de papel confeccionada pela Enfermeira do Setor, brincando com o coleguinha também paciente, como se nada fosse acontecer no dia seguinte.

Os pacientes e principalmente suas mães vivenciavam a ansiedade diária de um renal crônico sem centro transplantador. Eles eram chamados às pressas quando havia a doação de órgãos de doador falecido e viajavam até o local – sob o risco de não realizar o procedimento.

“ …Tem gente que vem e quer voltar

Tem gente que vai e quer ficar

Tem gente que veio só olhar

Tem gente a sorrir e a chorar…”

Este trecho da canção me fez recordar dos sentimentos de cada paciente e suas mães.  Aquelas que foram e conseguiram êxito no Transplante, relatavam o desejo de retornar para suas casas, rever a família e “tomar aquela tigela de açaí com farinha”. Havia situações reunidas. As mães que compartilhavam seus relatos bem sucedidos junto às outras que ainda não haviam passado pelo procedimento. Havia também aquelas que vibravam, riam e choravam com as histórias das crianças que foram e que os próximos poderiam ser seus filhos. Mães que acreditavam que o transplante seria uma oportunidade de transformação, na qual poderiam retomar a rotina de trabalho.

Atualmente, a realidade do Transplante pediátrico em Belém está se modificando. Em novembro de 2019 foi realizado o primeiro procedimento na Santa Casa.

Ainda assim, não podemos deixar de nos sensibilizar com essas histórias e imaginar que em outros lugares do Brasil, pacientes renais crônicos embarcam diariamente nessas estações, carregando em suas bagagens muitos anseios, sentimentos e emoções particulares. Hoje centros de hemodiálise estão repletos de outros viajantes que transbordam representatividade cultural como um recurso para se manterem próximos de suas raízes.

Atualmente na Clínica a qual assumo como Psicólogo, uma das pacientes que atendo é natural do Pará e solicitou transferência de um Centro de Hemodiálise de Manaus, para Curitiba. A mesma relata que via no TX a única alternativa para voltar a exercer suas atividades laborativas com a mesma eficiência de quando não convivia com a insuficiência renal crônica (IRC), sentia-se limitada e pensava muito nos filhos. Observava sua realidade, principalmente nas limitações que o município de origem tem em relação ao TX e nas possibilidades que Curitiba poderia oferecê-la para que pudesse mudar de modalidade de tratamento.

Neste caso em específico, ela embarca na estação carregando em sua bagagem o desejo de transplantar e a família. Contudo, por vezes olha para trás e observa tudo que conquistou antes do diagnóstico da doença, reflete com esperança e nostalgia. Hoje em menos de cinco meses realizando o tratamento de hemodiálise, já está inserida na fila de TX e foi acionada para o procedimento. Ainda que não tenha sido contemplada, sente-se feliz e imagina que em breve estará transplantada.

“A hora do encontro
É também, despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar
É a vida…”

A parte final da canção é oportuna para pensarmos sobre as vivências exemplificadas na reflexão e principalmente sobre uma questão importante que é a doação de órgãos e tecidos.

“A doação é uma forma de transformar a dor em algo bom. As pessoas podem fazer algo bom de uma situação de extrema tristeza como esta que estou vivendo. Eu sei que é uma visão romântica, mas a doação ajuda a pensar que ele continua”. Este é o relato de Graziela, familiar de um doador, em entrevista concedida a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA PARÁ (Belém). Secretaria de Comunicação Governo do Pará (ed.). Santa Casa do Pará realiza primeiro transplante renal pediátrico. 2019. ELABORADO POR DAYANE BAÍA. Disponível em: https://agenciapara.com.br/noticia/16772/. Acesso em: 02 mar. 2020.

 Associação Brasileira de Transplante de órgãos (ed.). 47% das famílias se recusam a doar órgão de parente com morte cerebral. 2013. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/default.aspx?mn=&c=1063&s=.   Acesso em: 02 mar. 2020.

Associação Brasileira de Transplante de órgãos (ed.). Registro Brasileiro de Transplante – Estatística de transplantes 2016. 2017. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/default.aspx?mn=&c=1099&s=.  Acesso em: 02 mar. 2020.

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